Carta-Convite

Carta – convite: Psicanálise e Literatura

“O livro resistiu à prova do tempo, demonstrou ser um maratonista. Todas as vezes ao longo da história que nos despertamos do sonho das nossas revoluções ou do pesadelo das nossas catástrofes humanas, ele continuava lá. Como diz Umberto Eco, o livro pertence à mesma categoria que a colher, o martelo, a roda e a tesoura. Uma vez inventados, não se pode fazer nada melhor.”
Irene Vallejo, O Infinito em um junco: A invenção dos livros no mundo antigo

“Um grupo de pessoas, que acreditava terem sido os mistérios básicos do sonho decifrados pelos esforços do autor do presente trabalho, sentiu, certo dia, sua curiosidade voltar-se para a questão da classe de sonhos que nunca haviam sido sonhados – sonhos criados por escritores imaginativos e por estes atribuídos a personagens no curso de uma história.”
Sigmund Freud, Delírios e Sonhos na Gradiva de Jansen

            “Sonhos criados por escritores imaginativos”, assim Freud inicia sua proposição de análise de uma obra literária a partir de um procedimento inicialmente utilizado para analisar um produto da mente inconsciente. Esse fato se insere numa longíssima linha de interação entre o produto lírico da humanidade e seus produtos, digamos, clínicos. Os textos orais de Homero não são somente uma história superficial; neles uma pessoa de seu tempo encontra instruções sobre como se portar, como funciona um acampamento, como se cozinha, etc. A encenação das tragédias gregas não eram apenas uma questão de entretenimento – eram também procedimentos de cura através do drama, uma maneira de dar forma pública a conflitos internos.

            É interessante notar – ainda mais para nós, seres do mundo pós-moderno – que a própria ideia da escrita de uma experiência interna é algo relativamente novo. Também o ato de leitura mudou ao longo do tempo. O costume na época dos gregos era a leitura em voz alta, de forma que, como lembra Irene Vallejo, a própria leitura silenciosa, juntamente com a possibilidade de reflexão, são vitórias do pensamento independente.

            Não é de se surpreender, portanto, que a psicanálise tenha impagáveis dívidas com a literatura. Partindo do Oedipus Rex, de Sófocles, tragédia tornada célebre para a clínica devido ao uso do nome de Édipo para um dos centrais desenvolvimentos teóricos de Freud, passando por suas análises de Goethe, por Hanna Segal, também dedicada às reflexões sobre as obras literárias, e chegando até psicanalistas contemporâneos que escrevem literatura, como Thomas Ogden, a relação entre as duas disciplinas sempre se deu de forma muito próxima.

            Por um lado, podemos pensar sobre como a psicanálise fez uso do discurso literário ao longo do tempo, principalmente como forma de representação dos diversos mecanismos e patologias. Freud faz análises de Hamlet, por exemplo, na Interpretação dos Sonhos. Além disso, dialoga com Goethe, Dostoievsky, dentre tantos outros autores. O discurso interno de personagens como o príncipe dinamarquês é terreno fértil para a análise, principalmente por serem personagens de amplo conhecimento do público. Podemos encontrar aí um uso da literatura como possibilidade da análise dos personagens que, embora fictícios, não deixam de dar mostras muito realistas das dinâmicas mentais. E também podemos encontrar a análise dos autores, ou dos artistas, a partir de suas obras, um ângulo também muito fértil. É o exemplo do caso de Schreber, analisado por Freud não tendo-o como paciente, mas sim através do contato com ele enquanto autor, ao ler suas memórias.

            Mas também existe um outro vértice muito interessante, para além da psicanálise da literatura, que são as articulações com a clínica, e a ideia de que a psicanálise produz uma espécie de produção literária em seu processo junto com o paciente. Isso é parte das proposições de Fábio Hermann, por exemplo, mas é parte da teoria já desde sua criação com Freud. Não por acaso, ele foi recipiente do Prêmio Goethe, um prêmio de natureza artística.

            Dentro desse contexto, podemos examinar a dinâmica da clínica, seus diálogos, seus métodos e produções, dentro de um contexto literário. Podemos pensar sobre os esforços de analista e paciente em encontrar sentido e coesão dentro dos diversos discursos internos como uma forma de produção de uma narrativa. Também podemos nos indagar se alguns de nossos procedimentos, dentro do trabalho de interpretação e reflexão, também não são recheados de lírica, se também não buscamos um certo ordenamento estético em nosso trabalho, ciosos de que isso também se relaciona estritamente com a saúde psíquica.

            O convite da Revista Mineira de Psicanálise é sobre artigos que estejam em articulação com esses diversos pontos, buscando aproximações possíveis entre esses dois campos tão ricos do saber humano. Aguardamos ansiosamente as proposições dos autores, leitores e escritores não apenas da letra, mas também da mente.

            O prazo para envio dos artigos será até o dia 17 de Setembro de 2023. As normas de publicação se encontram no site da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais (sbpmg.org.br). As propostas devem ser enviadas para o endereço de e-mail sbpmg@uol.com.br

Leonardo Siqueira Araújo
Editor

Conselho Editorial da Revista Mineira de Psicanálise
Maria Goretti Machado
Kátia Maria Amaral dos Santos
Cecilia Cruvinel Colmanetti

Referências:

Freud, S. (1907/1996). Delírios e sonhos na Gradiva de Jansen. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol IX. Rio de Janeiro: Imago.

Herrmann, F. (2002). A infância de Adão e outras ficções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Vallejo, I. (2022). O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo. Tradução Ari Roitman, Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Intrínseca.