TRANSGERACIONALIDADE

“Quem somos nós?  Pronomes pessoais.”

  Mário de Andrade, Danças

 

 

 

 

Pedro Nava, escritor brasileiro, em seu clássico livro Baú de Ossos (1972), faz um convite irresistível e, ao mesmo tempo, arriscado, convocando-nos para a imersão no profundo das tramas dos tecidos familiares.

Quem leu o livro jamais se esquecerá das associações vívidas e impactantes por entre os momentos saudosos e outros um tanto quanto aterrorizantes, mescla que domina o convívio familiar.

A palavra família vem do latim “familia”, que, surpreendentemente, significa “o conjunto dos escravos da casa”. Essa alusão nos coloca frente a um significante e à sua semântica peculiar e sugestiva, uma vez que demarcam o aprisionamento frente à trama familiar esses “nós” da Transgeracionalidade, que, seguramente, fazem presença em nosso psiquismo.

E, para melhor entender o caminho trilhado pelas transferências entre sujeitos e grupos familiares, tomemos o conceito de “Transmissão Psíquica”, fenômeno esse de grande importância na gênese do psiquismo humano.

Freud anunciara, contundente, em Totem e Tabu (2013): “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.

Desse modo, a psicanálise, antes mesmo dos estudos atuais, apontava para a importância das transferências geracionais, esses legados de memórias que constituem o psiquismo e que devem ser tomados pelo sujeito com propriedade, tentando entender a natureza desse tecido filogenético e dinâmico.

Citando Freud (1923):

 

Dessa maneira, no ID, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o Ego forma o seu superego a partir do ID, pode, talvez, estar apenas revivendo formas de antigos Egos e ressuscitando-as. (pág. 53)

 

A Transmissão se traduz pelo ato de transmitir e transferir, de diversas formas, os conteúdos. Como conteúdos entendemos aquilo que passa a ser de outro sistema, ainda que advindo de outro lugar.

Desse modo, a Transmissão é fundamental na organização da Estruturação Pré-subjetiva e também subjetiva. São vozes e impressões de uns sobre os outros, revelando a dinâmica do funcionamento grupal (família) fora e dentro do psiquismo.

Seria interessante pousar por sobre dois prefixos, trans e intra, uma vez que a diferença entre eles auxilia na compreensão dos conceitos de Transmissão Psíquica.

Trans revela o através, contendo em seu significado a ideia de algo que passa de um para o outro. Já o intra contém em sua significância a palavra entre, sugerindo uma relação entre as partes.

Desse modo, além de constituídos por aquilo que passa de geração para geração – Transgeracionalidade -, ainda temos a nossa constituição psíquica influenciada por algo que ocorre entre sujeitos (intersubjetividade).

Seguindo a linha teórica de Renès Kaëz (1996), existem formas variadas de transmissão psíquica, tanto geracionais como subjetivas.

Na forma de Transmissão geracional, entendemos que os “incontáveis Egos”, ditos por Freud, referem-se às vozes internas das gerações diretas, sejam elas depositários feitos entre as gerações próximas (Transmissão intergeracional) ou mesmo heranças transgeracionais, essas que ocorrem de geração para geração, mas não necessariamente entre famílias que se relacionaram na mesma época. São os antepassados presentificados na atualidade, e, nessa situação, vemos a força da transmissão psíquica na formação do ICS, antes mesmo da constituição subjetiva do Sujeito.

Em destaque à formação do Superego, tomando por base a Transmissão Transgeracional, estamos diante da constituição dessa instância intrapsíquica, não somente pela influência da geração mais próxima, tomando a figura paterna como referência de modelo para a formação do Superego. Por contiguidade, o superego do sujeito também tem a contaminação do modelo parental mais distante, assim como de outros tantos modelos, configurados nas gerações que se antecedem. Sendo assim, os descendentes herdam cargas psíquicas de familiares da primeira geração como de outros de gerações longínquas.

Desse modo, a família tem a configuração representativa de um objeto e precisa ser tratada como tal. É importante que, no processo analítico, a fala que relata os fatos familiares seja subjetivada, podendo o sujeito identificar em si modalidades de funcionamento que repitam os funcionamentos familiares, localizar as defesas utilizadas frente ao medo das invasões transgeracionais e, principalmente, tomar responsabilidade por sobre a ocupação ativa de sua própria mente, não sendo mais o sujeito passivo sobre o qual são postas as impressões de outrem.

Por: Rossana Nicoliello Pinho