Observatório Psicanalítico – 89/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
TRAGÉDIA DA BARRAGEM DE BRUMADINHO: a escuta analítica diante de uma inundação de lama, angústia e desamparo.
Ethyene Andrade Costa – SBPMG
No dia 25/01/2019, o Brasil foi inundado de diversas emoções devido ao que anunciavam os noticiários: a barragem do Córrego do Feijão, na zona rural de Brumadinho, havia se rompido, deixando a unidade da Vale e um povoado sob aproximadamente 15 metros de lama e rejeitos de minério.
No entanto, foi possível perceber no acolhimento dado à população de Brumadinho, que as vítimas não foram apenas aquelas que estavam no local da tragédia. A cidade toda está profundamente imersa em um “inquietante” rio de lama, angustia e desamparo. Diante do estouro da barragem, toda a população se viu inundada pelo Hislflosigkeit, o desamparo, compreendido por Freud não só como a incapacidade de um bebê para sobreviver sem um próximo assegurador, mas de forma mais ampla, como a falta de garantias com a qual o homem se depara diante da queda de ilusões protetoras.
Em sua obra sobre o desamparo, Mário Eduardo Costa Pereira (2008) nos lembra da origem da palavra Hislflosigkeit: Hilfe (ajuda) – Los (falta) – Igkeit, o que parece desenhar a situação dos desabrigados e das famílias das vítimas até então desaparecidas sob a lama.
Essas pessoas sentem-se na ausência de algo que possa ajuda-los a recuperar suas vidas, seus planos, sua esperança e confiança na sensação decontinuidade. A barragem psíquica de cada um deles parece incapaz de conter os rejeitos das tensões geradas pela perda de seus entes queridos.
Aqui convém retomar o conceito freudiano do Unheimlich, representado pelo conteúdo inquietante, nesse caso a condição humana de desamparo, que deveria permanecer oculto no inconsciente, se apresenta como o “que é terrível, ao que desperta angustia e horror” (Freud, 1919). A este cenário, ainda há que se acrescentar um agravante: a falta de notícias sobre os corpos das vítimas devido à extrema dificuldade de resgate apresentada pelo terreno instável de lama.
Diante da impossibilidade de velar seus familiares e assim da dificuldade de ingressar no processo de luto, pais, filhos, maridos, esposas, adultos e crianças ficam, muitas vezes, entregues à negação caracterizada por Freud (1925) como algo que o psiquismo gostaria de reprimir. Após três dias de busca, uma criança aguarda a mãe, dizendo “eu sei que minha mãe tá lá chorando e pedindo socorro”. Após 7 dias do incidente e um dia após enterrar o filho, sem ter tido a oportunidade de velar seu corpo identificado pelos legistas, uma mãe confessa: “hoje já liguei 3 vezes no numero dele. Eu ainda acho que eles podem ter me dado qualquer corpo e meu filho vai chegar aqui qualquer dia desses”.
Nas visitas aos familiares dos desaparecidos em suas casas muitas vezes tão simplórias, encontramos casas cheias, varandas preenchidas de muito carinho e esperança entre os que ficaram. Essas cenas nos ajudam a pensar na importância da escuta analítica em cenários de crise. As palavras do agente de Saúde Mental devem ser simples, o olhar afetuoso e a alma cheia de esperança de que essas pessoas poderão, um dia, reinvestir a libido em novos objetos, reinventando suas vidas. Como dizia anteriormente, diante dos desamparados, “sem ajuda”, em Brumadinho e região, o profissional tem sido aquele que pode amparar, emprestar suas forças e palavras. E por que não dizer que faz lembrar a função no Nebenmensch, alguém que está próximo e pode assegurar a vida do outro à medida que oferece contensão às tensões através de um abraço, da permissão para chorar, extravasar a raiva, ou mesmo para trazer lembranças do ente querido.
O que pode parecer pouco perto de tamanha tragédia, foi representado por um dos acolhidos com um agradecimento, dizendo: “Você tirou 80 quilos das minhas costas”.
Este é um trabalho que exige calma, compreensão e a escuta do que cada choro poderá pedir para nós, em situação de acolhida. Uma atuação que ultrapassa o setting do consultório e as paredes profissionais e existenciais que construímos até então. Há que se escutar, aprender, lutar e se enlutar para reconstruir, junto à essas pessoas ilhadas na intensidade de seus sentimentos, novas barragens.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)